Foto: Vinicius Becker (Diário)
Da esquerda para a direita: Molly, com o soldado Estevão; Max, com o soldado Rafael; Bella, com o segundo sargento Machado; e Sky, com o soldado Bueno
Se engana quem pensa que o efetivo do Corpo de Bombeiros é formado apenas por policiais militares. Em Santa Maria, o trabalho de resgate e salvamento também depende de quem carrega o título de “melhor amigo do homem”: os cães. Seja para atuar em desastres, tragédias ou emergências, cada animal é treinado de forma específica, em conjunto com o militar que o conduz. Juntos, eles formam uma dupla conhecida como binômio.
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O comandante do 2º Pelotão de Busca e Salvamento de Santa Maria, o 1º tenente Evandro Leal, destaca que a unidade reúne equipes altamente especializadas, tanto no trabalho com cães quanto nas operações de mergulho. Segundo ele, além de atender a região de abrangência do batalhão, o pelotão também é acionado em outras regiões do Estado e até do país, quando necessário, como aconteceu nas grandes operações realizadas no Vale do Taquari.
— Ser comandante desse efetivo, é muito gratificante porque contamos com equipes de alto gabarito. Temos os militares condutores, os cães de busca e também os mergulhadores, que formam grupos preparados para atender diferentes tipos de ocorrências — afirma Leal.
Ele ressalta que, hoje, já não se imagina atuar em missões de busca sem a presença dos cães:
— O cão é uma ferramenta essencial. Ele, junto ao condutor, forma o binômio, que é muito mais eficiente. Enquanto uma equipe de militares levaria muito mais tempo para vasculhar uma área extensa, o cão consegue abranger esse espaço em menos tempo e com maior precisão — explica.
Para Leal, as operações no Vale do Taquari foram as que mais marcaram a carreira até o momento, pela dimensão e quantidade de vítimas envolvidas. Ele também recorda outra ocorrência que ficou na memória: o resgate de um cachorro em Ibarama, Região Centro-Serra. O animal de estimação de um morador havia ficado preso em um paredão:
— O cãozinho estava a cerca de 15 metros de altura. Fizemos o acesso, realizamos o resgate e conseguimos devolvê-lo com vida ao dono – relata.

Santa Maria como referência
O canil do município também se tornou referência no desenvolvimento e aplicação de técnicas de busca com cães. Entre os métodos mais utilizados, está o chamado “caçar odor livre”, em que os animais são treinados para localizar qualquer pessoa em ambientes externos, como matas, tanto em situações de vida quanto em casos de óbito.
Outra técnica aplicada é o “man training”, modalidade em que o cão recebe uma peça de roupa ou objeto pessoal e passa a rastrear exclusivamente aquele indivíduo. Esse método começou a ser usado de forma mais estruturada em Santa Maria aproximadamente em 2016 e, desde então, passou a ser adotado também em outras regiões do Estado, ampliando a eficiência das operações de busca.
Atualmente, o canil de Santa Maria conta com oito cães de trabalho, cada um treinado para uma função específica. Nesta reportagem, serão apresentados cinco deles: dois atuam na busca por pessoas vivas em áreas de desastre, um é especializado em localização de cadáveres e outro é voltado para busca em grandes áreas.
Abaixo, conheça alguns dos parceiros caninos que trabalham lado a lado com os bombeiros:
Molly e o soldado Estevan: oito anos de atuação e grandes missões

A cadela Molly, conduzida pelo soldado Estevan, está com oito anos e atua hoje na busca por pessoas sem vida. Ao longo da carreira, participou de operações de grande repercussão, como em Petrópolis, no Rio de Janeiro, em 2022, na tragédia do prédio da Secretaria de Segurança Pública do RS e nas enchentes do Vale do Taquari.
— O treinamento começa deixando o animal à vontade, para que confie em ti. Depois, apresentamos odores e ambientes diferentes, até que ele entenda o que precisa realizar — explica Estevan.
Escolhida pela agilidade, Molly se destacou pela energia e pelo gosto por desafios. Hoje, mesmo perto da aposentadoria, mantém vigor e saúde:
— Ela não aparenta a idade que tem. Deve trabalhar mais uns dois ou três anos — completa o condutor.

Bella e o sargento Machado: a especialista em odor específico

Com 5 anos, a cadela Bella, uma bloodhound, atua na técnica de odor específico, conduzida pelo segundo sargento Machado. Nesse trabalho, o cão é apresentado a um objeto da vítima, como uma peça de roupa ou calçado, e segue a trilha olfativa até encontrá-la.
— O treinamento começou quando ela tinha três meses. Desde cedo, associei o colete ao momento de trabalho. A partir daí, ela aprendeu a diferenciar o lazer da função. No caso dela, a recompensa é o petisco, então sempre que cumpre a tarefa, é premiada — conta Machado.
No entanto, Bella não atua solta: trabalha sempre com guia longa de cinco metros, direcionando o condutor até a vítima. Em quatro anos de atividade, localizou quatro pessoas com vida, incluindo dois casos de tentativa de suicídio na serra de Santa Maria.

Sky e o soldado Bueno: dupla função em apenas dois anos

A cadela Sky, da raça pastor belga malinois, tem apenas 2 anos e meio, mas já exerce dupla função: busca tanto por pessoas vivas quanto por restos mortais. Conduzida pelo soldado Bueno, trabalha solta, em varredura de áreas.
— O treinamento começa desde filhote, selecionando características na ninhada. Para o cão, é uma brincadeira, mas para nós é trabalho. Focamos o instinto de brincar para que ele realize as buscas — explica Bueno.
Escolhida pela inteligência e agilidade, Sky também se destaca pela obediência.
— É um cachorro ativo, mas equilibrado. Isso facilita o trabalho em campo — acrescenta o bombeiro.

Iracema e o soldado Bueno: uma raça rara

Além de Sky, soldado Bueno também tem outra parceira nos trabalhos: Iracema. Com apenas um ano, é filhote da raça rastreador brasileiro, considerada rara e já em risco de extinção em décadas passadas. Mesmo jovem, ela já se detaca nas buscas com odor específico.
— Ela está no processo de ambientação, entendendo como vai funcionar, mas já trabalha, faz trilha, está bem adaptada com a função — explica.
Segundo ele, a raça foi criada aqui no Estado:
— Teve um momento na história que essa rtaça esteve praticamente extinta. Então, a partir do ano 2000, os criadores começaram um projeto para conseguir reabilitar a raça, e a Iracema faz parte desse movimento.
Sobre o nome pouco comum, ele explica:
— O criatório que doou ela tem algumas regras a seguir. Pelo que eu sei, as ninhadas têm que seguir uma lógica para serem batizados os nomes dos cachorros. No caso, toda a ninhada dos irmãos da Iracema têm nomes indígenas. Então, tem a Iracema, a Haruana, o Tupã... São 14 ou 16 cães da ninhada — completa Bueno.

Sheik e o sargento Brum: seis anos de atuação em duplo emprego

O labrador Sheik, parceiro do sargento Brum, é certificado para duplo emprego: atua tanto na busca por pessoas vivas quanto na localização de restos mortais, em áreas colapsadas ou rurais. Prestes a completar 6 anos, o cão acumula experiência em grandes operações de resgate no Rio Grande do Sul. Juntos, participaram de grandes operações como as realizada na região de Maquiné, em 2022, e Taquari 1 e Taquari 2, durante as enchentes.
Segundo o bombeiro, a afinidade com pessoas fazem do labrador um parceiro ideal.
— O labrador tem a principal característica do cão do bombeiro, que é ser dócil e gostar de pessoas. Por isso, a raça se encaixa perfeitamente, é um cão multitarefa. Consigo empregar nas buscas e até numa atividade assistida. É um cão que consigo levar numa escola, para as crianças tocar, fazer carinho, e também consigo ir para uma ocorrência, ele consegue ser resolutivo.
Sheik é filho de Guapo, cão que marcou a carreira e a vida do sargento Brum. Mais do que genética, ele carrega também um legado.
— O Guapo foi especial, não há o que se discutir. Ele me fez um ser humano melhor, aprendi muito da atividade de busca com ele, era um cão excelente, excepcional. E com o Sheik, a gente tem esse vínculo forte, ele é um cão muito bom, que nem foi o pai dele. A gente guarda as boas lembranças, as boas memórias, o legado que ele deixou e que vai permanecer por um bom tempo na eternidade.

Max e o soldado Rafael: o mais jovem em formação

Entre os mais novos do canil, está o labrador Max, de 2 anos e 6 meses, conduzido pelo soldado Rafael. No momento, está sendo treinado para busca de pessoas vivas, mas a ideia é que, futuramente, também atue em dupla função, incluindo restos mortais.
Max passará em 29 de setembro, em Itajaí (SC), por uma prova nacional de certificação.
— O cão nunca está 100% formado. Ele sempre está aprendendo algo novo, mas, hoje, já está apto a ser certificado — afirma Rafael.
A escolha pela raça se deu pelo perfil:
— O labrador é hiperativo e brincalhão, características que favorecem o trabalho. Dentro da ninhada, ele se destacou por ser o mais ativo. Apesar de exigir correções, evolui a cada dia de treinamento.

O elo entre bombeiro e cão
Apesar das diferenças de raça, técnica e experiência, todos os binômios compartilham algo em comum: o vínculo entre militar e cão. Esse elo de confiança é considerado essencial para o sucesso em missões.
— O animal precisa confiar no condutor para cumprir o que é esperado dele. A dedicação diária, o treinamento e o convívio criam essa parceria. É isso que transforma o cão em um verdadeiro parceiro de salvamento — resume o comandante Leal.
Do treinamento até a aposentadoria
Segundo Leal, formar um cão de busca tecnicamente apto não é tarefa simples:
— Dependendo da raça, da intensidade do treino, da aptidão do operador e do próprio animal, leva de um ano a um ano e meio para que o binômio esteja pronto. Até lá, o cão passa por exercícios de obediência e técnicas específicas de busca. Só assim podemos dizer que está preparado de forma técnica — explica.
Quanto ao tempo de serviço, não há idade exata para a aposentadoria.
— Cada raça tem seu ritmo. O próprio condutor percebe quando o cão perde condicionamento físico e rendimento. Quando isso acontece, ele é aposentado e costuma permanecer com seu dono, em casa — complementa Leal.

Guapo: o labrador que se tornou símbolo de coragem e dedicação

É impossível falar sobre os cães do Corpo de Bombeiros de Santa Maria sem fazer uma menção especial a Guapo, o labrador chocolate que se tornou referência em coragem e dedicação. Chegou à corporação em 2014 e, ao longo de quase uma década, participou de missões de resgate em tragédias como Brumadinho (MG) e Petrópolis (RJ), além de atuar em incêndios e enchentes na região.
Ao lado do sargento Alex Sandro Teixeira Brum, Guapo conquistou reconhecimento por sua eficiência e comprometimento, recebendo inclusive homenagem da Câmara de Vereadores de Santa Maria. Após sua aposentadoria, dedicou-se à cinoterapia, oferecendo apoio e conforto emocional à comunidade.
Sua partida, em julho de 2025, após um diagnóstico de câncer agressivo, deixou sua marca na história do Corpo de Bombeiros.
